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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Stevie Wonder | Songs In The Key Of Life


O melhor disco de soul-music de todos os tempos

Stevie Wonder queria sair da Motown. Queria, de qualquer jeito, se livrar da alcunha Little Stevie e ter liberdade para falar sobre amor, a influência da luta pelos direitos civis e testar novos arranjos em sua música.

Berry Gordy Jr., chefe da bem-sucedida gravadora, não tinha outra alternativa; a experiência do que se resultou com Marvin Gaye – uma discussão que culminou em What’s Going On (1971), até hoje o disco mais celebrado de sua carreira – lhe dava boas projeções. Então, decidiu mantê-lo e deixá-lo no controle de tudo.

Os quatro discos anteriores arrasaram quarteirões:

• Music of My Mind (1972) mostrou o poder do hit “Superwoman (Where Were You When I Needed You)”;
• Talking Book foi um dos melhores de toda sua carreira, vide “You Are the Sunshine of My Life”, “Superstition” e “I Believe”;
• Innervisions (1973) cravou de vez sua grandiosidade, com as pérolas “Too High”, “Golden Lady”, “Higher Ground”;
• E o seguinte, Fulfillingness’ First Finale (1974), faturou o Grammy devido ao sucesso de “You Haven’t Done Nothin'” e “They Won’t Go When I Go”.

Mas, se tiver que escolher apenas um disco de Stevie Wonder, o disco é Songs in the Key of Life. O nome é pomposo, e se relaciona com a necessidade de gêneros como rock e R&B em se reinventar, vide The Payback (James Brown) e There’s a Riot Goin’ On (Sly & The Family Stone). Tem também a ver com renascimento: naquele momento, Stevie Wonder captou a profusão do fusion-jazz do Weather Report e a presença cada vez mais aceita dos sintetizadores nas músicas, além da profusão de possibilidades diversas para a soul-music e o funk.

Há quem o critique pela utilização dos synths em “Pastime Paradise”, um crescendo orquestral com detalhes cortantes. De fato, a canção foi uma das ‘precursoras’ do estilo predominante no R&B romântico dos anos 1980 – uma amarra em que até mesmo ele caiu.

Estruturalmente, “Pastime Paradise” é um soul de contornos funk. A orquestração serve para demarcar a profundidade do tema – que fala sobre a alienação ao passado.

A conexão entre o que foi e o otimismo do que está por vir, na verdade, é seu grande opus. A junção da música europeia e da música africana complexifica o discurso de Stevie: ‘Eles estão gastando a maioria de suas vidas/Vivendo em um paraíso passatempo’.

“Love’s in Need of Love Today”, canção que abre o disco, também antecipou uma tendência da soul-music daí em diante: o call-and-response numa dinâmica diferente, em que o sussurro se integra como elementos musical e emocional.

Quando foi lançado, em 1976, Songs in the Key of Life era praticamente um combo: um álbum duplo, com mais um EP de acompanhamento. O termo combo também pode ser aplicado às referências do disco: o gospel trincado de “Have a Talk With God”, o free-funk instrumental de “Contusion”, a balada funkeada de “Ordinary Pain”… A coleção de músicas forma um tesouro, tanto que um crítico da BBC não receou em dizer: “A vida, literalmente, não pode ser completa sem este disco”.

É muito fácil gorjear pelo hibridismo musical de Songs in the Key of Life, mas se tem algo que ele representa, e poucos mencionam, é seu gigantismo pop. Atente para “Sir Duke”: o single abraça o funk e as guitarras do jazz, que passava por uma ressignificação estilística naqueles vindouros anos 70, vide Bitches Brew (1970), The Inner Mounting Flame (1971) e o contemporâneo Breezin’ (1976), de George Benson – por sinal, o laureado guitarrista é um dos principais artífices sonoros de Songs in the Key of Life.

“I Wish”, por si só, rendeu um Grammy a Stevie Wonder, por melhor performance. As cordas são bem arregimentadas e sintetizam uma formidável transição entre o lamento e a glória.

“O que Wonder faz em “I Wish” é situar uma maldade na bagagem, por conta de seu poder de cura, sua habilidade de fazer com que o indivíduo sinta vivo”, disse o biógrafo James Perone em The Sound of Stevie Wonder: His Words and Music.

O lado curador de Stevie Wonder ganha distintos aspectos no decorrer das canções. Em “Knocks Me Off My Feet”, é a sua ligação com o piano que lhe garante o toque de Midas.

Já “Village Ghetto Land” constitui uma ópera cronista, que dramatiza o que classificamos como status quo numa clara referência aos conflitos da luta pelos direitos civis: ‘Vidros quebrados estão por todos os lugares/É uma cena sangrenta/Os assassinatos afligem os cidadãos/A menos que dominem a polícia’.

Disco 2 de Songs in the Key of Life
Com o acúmulo de joias do disco 1, no disco 2 Stevie expandiu as arestas de como jazz, funk e eletrônica se condensariam na soul-music. “Isn’t She Lovely” põe a harmônica nesse meandro, sintetizando a alegria de quem se depara com uma pessoa tão cheia de atributos, que dá até orgulho de amar.

“If It’s Magic” parece o rascunho de uma balada lúdica, enquanto “As” se destaca como uma das melhores do disco. A canção, que chegou ao nº 36 das paradas Billboard, fala do amor enquanto uma necessidade de alcance. A insistência é transmitida pelos backing vocals. De tão voraz por este sentimento, Stevie altera a voz, quase chegando ao tom semelhante a um maníaco, um obsessivo. Herbie Hancock colabora com seu piano elétrico afastado, característica de seu lado ‘músico de estúdio’. (Em outubro de 1977, a canção foi lançada como single, com “Contusion” como lado B.)

“Saturn” é mais uma das músicas para colocar no status de grandiosa. Nela, Stevie sela parceria com o guitarrista Mike Sembello, famoso pelo grupo canadense Klaatu. Ela é praticamente um take escapista dos problemas sociais, raciais e sentimentais abordados em Songs in the Key of Life.

“Ebony Eyes” – que não tem nada a ver com o clássico de Rick James e Smokey Robinson, também da Motown – é um tributo à beleza feminina, enquanto “All Day Sucker” lembra os anos de Music of My Mind com seu estilo flashback meio space-funk. Nela, vemos o quanto Wonder se apropriou dos sintetizadores, quase transfigurando sua pureza por completo.

Por fim, o disco se encerra com “Easy Goin’ Evening (My Mama’s Call)”, tomado pelo lamento blueseiro da harmônica. Um saudosismo para uma obra que, 40 anos depois, permanece… saudosa.

Por fim, as palavras de Perone sobre a representatividade de Songs in the Key of Life:

“Contendo elementos de nostalgia, consciência social, espiritualidade e um largo alcance de estilos e texturas musicais, ‘Songs in the Key of Life’ captura a imaginação do público americano: foi muito bem-sucedido nas paradas pop e R&B, oferecendo singles de muito sucesso, como “Sir Duke” e “I Wish”. (…) Se for analisado como uma coleção de músicas individuais, ‘Songs in the Key of Life’ é um registro formidável e continua a permanecer como um dos melhores discos da era do rock”.


Sem exageros: o melhor disco de soul-music de todos os tempos.

Texto | Tiago Ferreira

1976 | SONGS IN THE KEY OF LIFE

CD 1
01. Love's In Need Of Love Today
02. Have A Talk With God
03. Village Ghetto Land
04. Contusion
05. Sir Duke
06. I Wish
07. Knocks Me Off My Feet
08. Pastime Paradise
09. Summer Soft
10. Ordinary Pain

CD 2
11. Isn't She Lovely
12. Joy Inside My Tears
13. Black Man
14. Ngiculela - Es Una Historia (I Am Singing)
15. If It's Magic
16. As
17. Another Star

EP: A Something's Extra Bonus
18. Saturn
19. Ebony Eyes
20. All Day Sucker
21. Easy Goin' Evening (My Mama's Call)

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